FIN ?
Como materialista (logo, ateu) eu não tenho uma relação muito emotiva com a morte. Sempre penso na inevitabilidade dos acidentes, tragédias, ou simplesmente na decomposição gradual do corpo e da mente humanas. Não encaro a finitude a partir de nenhuma crença que proponha dar a ela um sentido que não deve ter. A morte simplesmente é, e chega para todos. Excetuando nossos entes queridos, cuja partida nem sempre é tranquila, é por essas e outras que eu geralmente não choro quando se vão nossos ídolos ou referências culturais. A morte vem, e é um fato muitas vezes até desinteressante.
No dia 13 de setembro de 2022, depois de algumas décadas, eu finalmente chorei diante da morte de um ser humano que nunca conheci pessoalmente.
Jen-Luc-Godard. O JLG. Poeta. Comunista. Apaixonado. Transgressor. Revolucionário. Cineasta acima de tudo.
Godard me ensinou muitas coisas. Me introduziu o marxismo-leninismo. E a ideia de que arte e política não estão (nunca) dissociadas. De British Sounds (filme de um dos períodos mais radicais de sua carreira, à frente do Grupo Dziga Vertov), vem um de seus slogans mais marcantes:
“A fotografia não é reflexo da realidade. É a realidade do reflexo”.
Godard sabia melhor do que ninguém que a fotografia é um dos instrumentos da burguesia para disfarçar a realidade para as massas. E sabia, também, o quanto a subversão deste processo é necessária, rumo à superação materialista das amarras do capital.
“O capitalismo criou um mundo à sua imagem e semelhança. Temos que destruir essa imagem”.
Ninguém se empenhou tanto nesta destruição - que por vezes produzia fetiches ainda mais potentes e duradouros do que aqueles das imagens de consumo -, dialeticamente. Se reinventava o tempo inteiro, talvez por saber que cristalizar a subversão produz novos fetiches a serem devorados pela máquina ideológica do império da mercadoria.
Matou o cinema ao menos três vezes. E nunca matou o cinema.
Porque o cinema-política, o cinema-poesia, ou o kynema (como queria Glauber), é o instrumento dialético imorrível. A hegemonia. A subversão da hegemonia. A hegemonia da subversão. Godard não era um anti-Lumière, ou um anti-Hollywood. Porque sabia, também, que o cinema é mágica. E que mesmo desmontando-o e desnudando seus dispositivos mais descaradamente ideológicos, produziam-se novos signos, reificados, em outra ordem.
É preciso sabedoria para não simplesmente exercer a negação.
Godard era sábio. E deixa o dia de hoje triste, vazio, sem sentido. Um dos únicos seres a quem consigo chamar, propriamente, de ídolo. Mas a idolatria não lhe cabe. E foi um grande (e sábio) amigo quem definiu melhor o momento:
“Acabaram os ídolos. Não precisamos idolatrar mais ninguém. Acabou o cinema. Agora podemos fazer o que quisermos”.
É bem por aí.
Descansa, Godard. A gente continua daqui.