O último debate presidencial do 2º turno terminou com um dos candidatos citando um lema nazi-fascista, após ter passado uma hora e meia distorcendo fatos e alimentando realidades paralelas. E, vejam, não há isonomia na mentira. Historicamente, disputas eleitorais envolvem mentiras, exageros, calúnias. O método do fascismo vai além da disputa pontual. Usa a mentira como instrumento de governo.
Foi só diante desse patético final de debate que algumas fichas caíram para mim. Há mais ou menos 10 anos atrás, um processo de destruição do consenso público começou a ser gestado, com apoio imoral e criminoso da imprensa burguesa e das chamadas big tech, ambas se relacionando com um público cada vez mais revoltado e desesperançoso com as instituições. Nós não anotamos a placa do caminhão na enxurrada de tragédias que se seguiu. Parece que se abriu um buraco diante de nós. As mentiras começaram sutis, em uma campanha ideológica comandada pela grande mídia corporativa.
A reforma trabalhista vai gerar empregos. - A flexibilização das condições de trabalho, por si só, nunca gerou um emprego sequer. É preciso limitar o gasto público. - Nenhum país se desenvolveu no mundo, à esquerda, à direita ou ao centro, sem investimentos públicos volumosos, em especial nos projetos de modernização técnico-produtiva. O PT criou o maior esquema de corrupção da história da galáxia. - A corrupção petista abalou a aura idônea e justa do partido, mas perto da grande corrupção capitalista (o infame desmonte de qualquer ideia de bem público, pela anarquia neoliberal), não chegou a fazer cosquinhas.
Foi tanto tempo de propaganda disfarçada de jornalismo, que é difícil, hoje, desmentir as coisas. A evolução antiética e problemática das redes virtuais transformou falácias midiáticas em fluxo paralelo de informação e isolou nichos de público em bolhas - espaços restritos onde afirmações se repetem sem consequência, checagem ou exposição ao contraditório. Mentiras propositivas e argumentos falaciosos. A política como meme. Só a partir disso tudo foi possível chegarmos ao ponto em que um presidente da república pode ir à televisão dizer que em seu governo o feminicídio diminuiu, quando na verdade aumentou. Ou que não possui fotos com um aliado, com quem posou, literalmente, para dezenas e dezenas de registros fotográficos publicamente acessíveis. A realidade não importa. Só importa o próprio umbigo, e a confirmação de vieses inabaláveis.
Chegamos ao limite disso. Muita gente morreu. Doenças há muito erradicadas voltaram a nos assombrar. Minorias foram vergonhosamente perseguidas. A intolerância fechou a porta e inviabilizou consensos básicos. Perdemos.
Mas 2022 viu a formação da maior frente ampla que este país já viu desde as Diretas Já. Agregou, em torno do único estadista deste país que teve a coragem de exterminar a fome, um amplo espectro ideológico de políticos, celebridades, militantes populares e, sim, burgueses. Para os comunistas como eu, é amargo comemorar uma vitória obtida no seio de uma grande conciliação de classes, que irá restituir alguns direitos, enquanto segue arrancando outros na equação ganha-ganha operada pela burguesia em quase todo arranjo político conhecido.
Não se enganem. Não havia outro caminho. A revolta de classes foi capturada pelo extremismo de uma direita populista falsamente preocupada com as causas populares. É missão dos comunistas garantir que a próxima grande insatisfação de classes seja abraçada pela radicalidade verdadeiramente popular. Capaz de romper os pactos burgueses e introduzir a tão esperada transição socialista. Antes disso, é necessário interromper a insanidade.
Será preciso enfrentar uma ruptura epistemológica sísmica. Restabelecer a noção de realidade e de política. Recolocar as coisas em seus devidos lugares, para que até a conciliação de classes seja combatida a partir de seus óbvios limites. O primeiro passo é cessar o pesadelo.
Ele ainda não acabou. Mas um primeiro passo importante foi dado.
E foi dado junto a uma das maiores forças políticas que este país já viu. Após uma prisão política, arquitetada pelo Departamento de Estado dos EUA junto aos militares e juristas brasileiros; após mais de uma década sofrendo uma das campanhas midiáticas detratoras mais absurdas que este país já viu; após lutos pessoais, golpes, desrespeito e chacota; após tudo isso, e mais um pouco, Luiz Inácio renasce. Se reelege aos 77 anos, com a missão de tentar apaziguar um país ferido. Que precisa, como ele próprio, após um cárcere arbitrário e criminoso, lamber suas feridas e se reconciliar com suas contradições.
Que um novo país tenha começado neste 3o de outubro de 2022. Ferido, abalado, quase abatido, mas cada vez mais forte.